Silêncio que se abate na rua à medida que a noite avança. As estrelas que brilham rivalizam os candeeiros de rua para ver quem ilumina mais, o vento rasga o ar e entrenha-se nas aberturas do meu casaco, o cachecol que me envolve aquece mas, no fundo é tudo aparente.
Aparente porque nada me pode aquecer, cheguei a tamanho estado em que me vejo na rua sozinho, sem casa para ir, farto de dormir no soalho de estranhos, de vaguear pelas ruas, estou farto de caminhar por ruas e vilas, e no entanto cansado apenas da rotina de viajar, pois um novo capítulo e uma aventura poderiam ser aprazíveis.
Desço a rua principal, e só assim consigo aperceber-me do quão longe vai a noite, pois nem os abrigos para os homens mais sombrios se encontram abertos, não há portas abertas para o calor de tabernas, apena so silêncio e portas fechadas.
E estou eu aqui, sem transporte ou destino, apenas andando, vendo as janelas embaçiadas e de longe apreciar os interiores de relojoarias e carpintarias, todos os instrumentos num silêncio e paz imperturbável, um quadro surrealista à espera de ser pintado.
E começa a doer o meu coração, nem o frio apaga a chama da saudade, nem o vento me limpa os olhos sempre marejados. E o que me resta? Sou uma sombra, vivo quando todo o mundo dorme, e desapareço ao raiar da manhã, nem ladrão ou bêbado me acompanha, em meus olhos se vê a solidão, e como cheguei aqui.
Lembro-me de ser criança e andar alegremente, do calor dos seios da minha mãe, da segurança do braço forte do meu pai, e o amanhã, era uma visão gentil, agora é mais um passo do martírio que é a vida.
E sento-me agora encostado a um candeeiro, as casas que me circundam parecem abandonadas, e agora té na minha mente ouço o bater fraco do meu coração, sinto saudade, e saudade me impede de viver, cada suspiro mais díficil, cada gesto mais pesado, respirar de alma quebrada é para mim uma tarefa impossível.
E o vento é tão forte nesta hora, que me obriga a cerrar os olhos, os pés já nem os sinto, enterrados algures na neve, e as minhas mãos gastas como se fosse obreiro, mas, única obra que fiz foi a maneira com que destrui tudo de que bom em mim havia.
A família? Desapareceu, morreu ou esqueceu. Amigos? Afastei-os na minha vontade de mudar, de me tornar adulto, O meu amor? Deixei-o ir embora, julgando ser eu o pilar da minha vida.
E que tenho agora senão o amor do fundo de uma garrafa, e o sabor amargo do meu cachimbo, os meus ouvidos já não ouvem, porque já nem Deus me canta canções de embalar, sou um simples desterrado do paraíso, nem anjos caídos me abrigam.
E a barba que tenho cobre a minha face, deixo de saber quem sou, o tempo desfigurou-me, e agora que penso nem nome tenho, o brilho dos meus olhos afunda-se agora nestas cavidades duras e desaparecem, isentos de vida e amor, apenas contendo a apatia.
E o coração bate mais devagar, e a minha mão repousa sobre o meu peito, procuro um relógio, que representava tudo o que me ligava ao passado mas, a névoa do álcool esquece-me que vendi pelo preço de uma garrafa do uísque mais barato, e cá estou eu passeando à neve, sem nenhum sentido, a vida quebrou-me.
E no meu bolso está um papel, uma carta que escrevi aos meus pais, no verso da que eles me escreveram antes de vir para estas paragens pois não tenho dinheiro para papel, e caneta, essa roubei, apalpo a folha amachucada o mais forte que consigo, contorço-a nos meus dedos e sinto as dobras a tocarem-me na palma da mão, as memórias apertam, a saudade contorce, e meu pulso agarra a carta que nunca enviarei, sinto o choro na minha cabeça mas, não o ouço, sei como soa, a voz cavernosa com pouco so saindo entre a barba longa.
E os meus olhos ficam marejados de novo enquanto se levanta o nevão d enovo, um passeio que acaba. Uma jornada imperfeita, para um caminhante de Deus esquecido, o sonho perdido e olho do outro lado e vejo um vulto.
De cartola bem alta, e fato à medida, os olhos verdes brilhantes, o pulso em minha direcção, o sorriso enigmático, é então o Diabo que na minha miséria me socorre, uma fuga fácil.
Cuspo no chão e atiro-lhe a garrafa. Dpeois fecho os olhos e toco na minha face, não há barba nem surdez, não há nevão. Continuo o passeio pela rua abaixo, olhando para o que me rodeia, vejo o céu e sinto os sonhos, e agora me apercebo do que esta noite significa, este passeio, corro para casa e telefono a um amigo, a carta, essa irá para o correio amanhã.
Adio o meu encontro com o cavalheiro para muito depois. Aproveito aquilo que tenho, e quem sou, sei que se desistir, não haverá redenção. Quem me espera no fim de uma desistência não é a luz mas, sim a escuridão.
Sempre fui amante da luz.
segunda-feira, 28 de abril de 2008
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